Dark Souls e as mil e uma maneiras de se pegar na espada

Eu, com certeza, não sou o primeiro a comentar como a série Souls é especial.

Tanto a qualidade presente em cada jogo quanto fatores mais “compartilháveis em redes sociais” – como notas e números de vendas – falam por si só. Muitos elogios já foram ditos e escritos sobre sua forma de jogar, apresentação gráfica, trama minimalista e trilha sonora, e grande parte de tais elogios está certa.

Porém, o que particularmente me chama a atenção é como os elementos que compõe essa saga de fantasia sombria são multifacetados.

Gente bonita, não se preocupem, eu juro que o que eu falei faz sentido.

Vejamos o combate, a razão da fama de jogos difíceis que a saga carrega. Ao contrário do que se espera de um jogo de RPG usual, no qual se escolhe uma entre diversas classes e nela evolui, aqui, com uma dedicação não muito profunda, você pode ser, de certa forma, todas elas.

Por mais que o material promocional da franquia insista na estética de “cavaleiro triste andando de forma melancólica”, o jogo abraça o mago que não fica menos de 3 metros do inimigo, o arqueiro que não sabe como o arco funciona nesses jogos e o clérigo que investiu incontáveis pontos no atributo “fé” e vai provar matematicamente que o sangue de Jesus tem, de fato, poder.

Mas mais importante, o jogo abraça qualquer tipo de combinação de atributos para que você triunfe sobre as adversidades da maneira que achar melhor. Sim, isso inclui chamar o amiguinho para ajudar.

Essa liberdade e espaço para criatividade em um combate contra desafios implacáveis permite que os confrontos possam ser resolvidos de inúmeras maneiras diferentes. Com exceção de determinados embates, não há resposta certa universal.

Porém, mesmo com um sistema de jogo tão agradável que você pode deixar de lado todo o resto e interagir com a obra de uma maneira meramente mecânica (ignorando a história e focando apenas em ficar mais forte), as ambientações e tramas também carregam a mesma criatividade que as batalhas possuem.

Tanto é verdade que a franquia que melhor se compara com a trilogia Dark Souls, principalmente nos dois primeiros jogos, não é uma saga de RPG ou aventura medieval, mas sim nada mais do que Silent Hill.

Pode parecer uma comparação incialmente bizarra, afinal, o que um jogo de horror ambientado nos Estados Unidos teria a ver com cavaleiros que rolam para longe do perigo? Bem mais do que aparenta.

Peguemos o primeiro jogo de cada saga. Ambos retratam uma ambientação difundida no imaginário popular – uma cidade interiorana norte americana e um reino de fantasia – e a corrompem com uma camada de decadência.

A jornada pelas ruas decrepitas da cidade de Silent Hill nos leva por uma série de ambientações extremamente quotidianas – hospitais, escolas, parques… – as quais são sempre apresentadas de forma “normal” antes de serem distorcidas como um pesadelo vívido, chegando ao ponto em que qualquer pretensão de estamos em um ambiente coerente é jogada pela janela.

Da mesma maneira, o reino de Lordan, do primeiro Dark Souls, é um típico reino de Videogame. Ele possui a “zona da lava”, “zona sombria”, “zona da floresta” e por aí vai. A admiração e inspiração na franquia The Legend Of Zelda, admitida pelo criador em entrevistas, fica evidente enquanto exploramos o mundo.

Contudo, ao contrário da vasta maioria dos mundos fantasiosos presentes nos mais diversos tipos de arte, aqui, as duas palavras que ajudam a definir este reino são “melancólico” e “hostil”.

Há uma forte sensação de que o mundo está se agarrando à uma era de ouro que já passou (o que reflete muito a trama principal), com paisagens que um dia foram belíssimas sendo vítimas do tempo e do descaso, chegando ao ponto de que o único cenário que possui alguma beleza pristina em seu visual não passa de uma grande ilusão.

Mas mais do que semelhanças na forma em que apresentam seus respectivos ambientes, os jogos partilham uma mesma função: nos ensinar as regras do mundo. Vejam, ainda que essas obras sejam consideravelmente interpretativas e façam uso de alegorias, no final de suas jornadas, você terá respostas o suficiente para saber como as coisas funcionam.

Tendo colocado os fundamentos com seus primeiros jogos, é curioso como suas respectivas sequências se portaram da mesma forma: indo para direções mais surpreendentes e pessoais.

Silent Hill 2 e Dark Souls 2 poderiam apenas tentar seguir na onda de sucesso de seus antecessores e serem apenas obras maiores, com mais isso e mais aquilo. Porém, elas não vão por esse caminho.

Em vez de sequências diretas dos eventos passados, os jogos procuram abordar questões muito mais introspectivas. Como seria o luto no mundo de Silent Hill? É possível fugir de traumas e tragédias em uma realidade em que nossos pavores mais íntimos ganham formas físicas e literalmente nos perseguem?

Já no segundo jogo da série Souls, o questionamento é voltado para nossa relação com memórias e o tempo. O que seria de nossas criações, conquistas e até de nós mesmos em uma realidade em que nossa existência fosse prolongada demais?

Na trama da série, tanto a sua protagonista quanto diversos outros personagens carregam uma maldição que os impede de morrer definitivamente. Ou seja, o fato de que você perde inúmeras vezes no jogo é algo canônico.

Porém, Dark Souls 2 leva esse conceito para um ponto mais pessoal. Veja, você – na vida real – é o resultado de inúmeros fatores, tais como experiências, ambiente e vínculos. Dito isso, grande parte desses fatores pode ser resumida como “memórias”.

Nossa relação com nossas memórias – como nós às interpretamos – é algo de extrema importância para nossa personalidade. Em outras palavras, para quem nós somos.

Pois bem, com isso em mente, o que seria de nossa identidade em mundo em que vivêssemos tanto, passando por tanta coisa, que nossas memórias fundamentais fossem esquecidas? E, em uma escala maior, como seria nossa relação com os locais que nos cercam após seu significado ter sido perdido no tempo?

E pegando carona nos temas de esquecimento e mudança, temos Dark Souls 3.

Ao contrário dos últimos jogos, este não possui um paralelo com um jogo específico da franquia de terror Silent Hill, mas sim com uma outra obra igualmente influente no cenário dos jogos: a novela “Malhação”.

Lançada em 1995, a novela almejava abordar temas atuais e relevantes na vida de adolescentes e de jovens adultos, tendo como ambientação uma academia de malhação, daí o título. Contudo, essa pode muito bem não ser a “malhação” que você assistiu.

Talvez suas memórias do seriado remetam a um colégio chamado “múltipla escolha” e a um bar chamado gigabyte, cenário esse que passou existir apenas no 8º ano da série. É perfeitamente possível não ter ideia do contexto das primeiras temporadas, assim como desconhecer que forma assumiram as demais que se seguiram até o fim da novela, em sua 27ª temporada.

Porém, imagine se não tivesse sido cancelada. Imagine que malhação se perpetuasse ao longo dos anos, muito tempo após um necessário fim, e os anos virassem décadas e as décadas virassem séculos. O quão reconhecível seriam os personagens, as locações e a própria razão de ser da série?

Mantendo essa noção de uma série continuar por bastante tempo, muito embora eu tenha dito que Dark Souls 3 não se pareça com nenhum Silent Hill, o terceiro jogo da série Souls faz um excelente paralelo com a franquia de terror como um todo.

Vejam, existem inúmeros Silent Hills diferentes, desde jogos que tentam resgatar as raízes de horror dos clássicos, até mesmo máquinas de pachinko (um caça-níquel japonês) e tudo que há entre os dois extremos. Lugares e personagens presentes nos primeiros jogos, os quais possuem uma razão e significado para estarem lá, são reaproveitados em obras mais recentes, com o único intuito de serem reconhecidos e fazerem alguém dizer “olha lá, mãe, é o Pyramid Head!”.

O resultado disso é uma sensação de que novas versões de uma obra são criadas não pelo fato de existirem ideias e histórias interessantes de serem exploradas, mas sim pelo fato de que suas identidades na cultura popular são o suficiente para potencialmente gerar um lucro.

Vejam o exemplo de “Os Simpsons”, a qual está durando por tanto tempo que as personalidades e características dos personagens passam a ser irreconhecíveis.

E essa é a questão que Dark Souls 3 quer abordar. Enquanto o segundo jogo questiona “o que acontece com a nossa identidade e com a do nosso mundo diante da passagem do tempo?” o último da saga reformula a questão para: “o que acontece com a franquia Dark Souls diante da passagem do tempo?”.

O mundo do 3º jogo é um lugar visivelmente cansado. Apesar de, tecnicamente, reutilizar grande parte das mesmas localidades do primeiro, todas elas estão ainda mais decadentes e acabadas. A atmosfera presente por toda a obra é a de um mundo que viveu muito mais do que deveria.

Muito embora seja apenas o terceiro Dark Souls, o jogo é apresentado como se fosse algo como o 33º, no qual o ato de dar continuidade à era do fogo – período em que todos os jogos da franquia se passam – ocorreu incontáveis vezes.

Dessa forma, é transmitida a ideia de que, similar à série malhação, à franquia Silent Hill, e aos Simpsons, o mundo do jogo se perpetuou por muito tempo. Muito mais tempo do que deveria.

As construções parecem construídas sobre outras construções, as quais, por sua vez, foram construídas sobre outras construções. Nomes de ambientações conhecidas da série são dados a lugares que, embora familiares, passaram por inúmeros ciclos de reaproveitamento e, consequentemente, decadência.

O primeiro cenário, por exemplo, é um cemitério que está tão lotado de lápides e covas, que elas passaram a ser colocadas com tanto descaso que mais parecem ser uma infestação de ervas daninhas.

Em seguida, o reino que visitamos está nos momentos posteriores de um grande conflito, o qual deixou um rastro de destruição e pestilência. O único lugar que aparenta manter alguma grandeza – o qual é o mesmo do primeiro jogo -, revela estar, em seu interior, decrépito.

Da mesma forma que o mundo carrega um estilo visual de decadência arquitetônica, os chefes que enfrentamos também portam o mesmo fardo.

Logo na primeira luta do jogo, o embate contra um ágil cavaleiro muda drasticamente quando uma contaminação explode de seu corpo e o transforma em uma abominação abstrata. Da mesma forma, um dos principais chefes, o qual é constantemente referido como um lorde, revela ser uma gosma senciente que está habitando o cadáver de uma icônica chefa opcional do primeiro jogo e o usa como se fosse um fantoche.

Tanto o mundo do jogo como a própria franquia clamam e suplicam por um fim. Mas surpreendentemente, a série finaliza olhando para o futuro.

Nos DLCs do jogo, somos apresentados à uma simbólica trama, a qual termina apresentando o início do processo de criação de um algo novo.

E qual seria essa nova criação?

A resposta é bem simples, nem precisa jogar o jogo para encontrá-la.

Sekiro, Elden Ring e, mesmo tendo vindo antes, Bloodborne, são todos diferentes resultados do fim de Dark Souls 3. Com a saga finalizada, sua desenvolvedora, a From Software, pode buscar novas histórias e jornadas.

Pode, finalmente, criar algo novo.

Mas, inegavelmente, o legado da série Souls estará sempre presente.

Seja na elaboração de um sistema que permite diversas abordagens para superar os desafios, ou na construção de histórias que subvertem expectativas e carregam um significado tanto do ponto de vista pessoal quanto da franquia como um todo, a série Souls demonstrou haver inúmeras formas de se interagir com um mesmo sistema de combate e de contar uma trama.

A série Souls provou que há, praticamente, mil e uma maneiras de se pegar na espada.

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